Num momento histórico onde o Brasil e outros países estão começando a estruturar uma indústria regulada de produtos à base de cannabis, é vital trazer à essa discussão a importância de preservar aqueles que protagonizam a luta em prol da maconha há muito tempo.
Desde que a Anvisa regulamentou o uso da maconha para produção de fármacos para fins medicinais no final de 2019, muito se fala sobre o futuro da produção de medicamentos e outros produtos à base de cannabis. Mas para que avancemos nessa discussão, antes é muito importante fazer um esclarecimento que já está estampado no título desse artigo: indústria canábica não é indústria farmacêutica e nem deve ser tratada como tal. Mas por quê?
Quando damos um passo importante como o que foi dado pela Anvisa, nos vemos diante da necessidade de criação de políticas que embasem como serão as coisas na prática. No caso da maconha, em especial, essa questão atinge muito mais aspectos porque estamos falando não apenas de uma planta, mas sim de um fenômeno social.
Relegada a um papel marginal até os dias de hoje, a maconha esconde muitos segredos que ainda não sabemos. Só para se ter uma ideia, calcula-se que a planta tenha mais de 500 componentes, boa parte deles ainda carecendo de estudos aprofundados acerca de seus benefícios.
Soma-se a isso o fato de que a maconha é parte importante da cultura e da identidade não só de grupos sociais como também de países inteiros, e podemos começar a entender a importância de discutir o impacto da indústria farmacêutica nisso tudo e qual o papel de outros grupos na discussão. Mas antes, vamos fazer um breve recorte histórico para entender melhor onde quero chegar.
Historiadores calculam que o uso da maconha para fins medicinais e recreativos é uma prática milenar. Na Ásia, há 6.000 anos, já se cultivava a planta para fazer uso de suas sementes e fibras. A categorização da maconha como uma droga perigosa é algo recente, de cerca de uns 100 anos. Você deve estar se perguntando: por quê? A resposta pode ser resumida em uma palavra: política.
A guerra às drogas protagonizada pelos Estados Unidos criou um ambiente de opressão que desconsiderou não só os benefícios medicinais da planta, como também tentou apagar o que ela representa nos aspectos culturais e identitários de milhões de pessoas. Como resultado, os mais afetados foram os povos historicamente marginalizados, como negros e latinos.
O curioso em relação a isso tudo é que, ao mesmo tempo em que encabeça uma guerra que se espalhou por boa parte do planeta, os Estados Unidos detém a patente do uso da planta, que é classificada como neuroprotetora. Uma contradição que só reforça os termos políticos por trás da proibição.
Como resultado, uma planta tão rica quimicamente ainda é quase desconhecida da ciência. Até mesmo nos Estados Unidos, apenas uma universidade tem autorização federal para distribuir insumos da planta para os poucos pesquisadores que são autorizados a conduzir pesquisas sobre ela.
Não é de se estranhar, portanto, que os Estados Unidos tenham ficado para trás e hoje Israel, que não impõe restrições à pesquisa, vem avançando cada vez mais nos estudos sobre as propriedades da maconha.
Entre o final dos anos 80 e início dos anos 90 uma descoberta científica trouxe novamente a cannabis ao centro das discussões. Cientistas descobriram receptores presentes no corpo humano que reagiram positivamente aos componentes da cannabis. É o que passou a ser chamado de Sistema Endocanabinóide (SEC).
Graças aos estudos envolvendo esse sistema, começou a se levantar a questão de trazer os benefícios da maconha para o campo medicinal no tratamento de diversas enfermidades, especialmente as de caráter neurológico. Mas como aprofundar essas pesquisas e oferecer os benefícios a milhões de pessoas se a planta ainda é extremamente estigmatizada e sua patente proibida em muitos países?
Essa discussão fez com que muitas outras nações passassem a olhar com mais atenção para a maconha e suas propriedades. Embora ainda estejamos longe de conhecer todas as propriedades da cannabis, é inegável que há iniciativas em todo o mundo em busca de respostas. Com a indústria farmacêutica voltada à maconha tomando corpo, surgiu outra questão delicada: o isolamento dos componentes da planta.
Faz parte do modelo desse tipo de indústria isolar as propriedades da planta, patentear cada avanço conseguido e produzir soluções a partir desses fragmentos. Mas seria esse o melhor caminho? Evidente que não! O uso de todos os componentes da planta torna seu poder muito mais efetivo.
Além disso, cada ser humano possui um Sistema Endocanabinoide único, fazendo com que as doses necessárias para que se atinja um objetivo terapêutico dependam muito mais de um conhecimento individual sobre seu próprio corpo e mente do que de imposições pré-determinadas.
Após entender tudo o que foi dito acima, você já deve ter percebido que a indústria farmacêutica e a indústria canábica estão longe de ser a mesma coisa. Ambas partes de princípios diferentes e ambas lidam com a cannabis de uma maneira completamente diferente.
Enquanto a indústria farmacêutica e suas grandes corporações estão pesquisando e isolando a maconha por finalidade essencialmente econômica, a indústria canábica entende que a planta deve ser respeitada como um todo. Mais do que isso, a indústria canábica entende que o indivíduo deve ser o centro das discussões e deve ter sua autonomia preservada especialmente no que diz respeito a como a planta deve ser usada. É o que eu tento fazer com a Linha Canábica desde que ela foi lançada.
Em sua maioria, os protagonistas da indústria da cannabis estão lutando há muito tempo pela desestigmatização da maconha. Até mesmo em países onde o uso da planta é proibido e os estudos são altamente controlados, essas pessoas se empenham em mostrar quão inconsistente é essa luta contra a maconha e como muitas pessoas estão sendo prejudicadas por isso.
Por tudo isso é muito importante que, num momento como esse pelo qual o Brasil está passando (de legalização de produtos à base de maconha), os reais protagonistas da indústria canábica não sejam apagados em prol de uma indústria farmacêutica que, com certeza, se mobilizará cada vez mais para lucrar com a planta.
A maconha não é uma planta como outra qualquer. Ela tem milênios de história, atravessou gerações, ajudou a formar culturas, grupos sociais e a travar lutas. Isso não pode ser relegado à segundo plano justamente num momento onde pessoas que tanto foram marginalizadas finalmente poderão ter mais voz ativa.
É por isso que indústria canábica não é indústria farmacêutica e nem pode ser suprimida por ela. Em meio a tantas discussões sobre o futuro do tema, é fundamental garantir que grupos que historicamente lutam pela planta tenham o direito de continuar o fazendo.