Recentemente publiquei um artigo explicando a importância de diferenciar indústria canábica de indústria farmacêutica. Hoje nós vamos entrar um pouco mais a fundo nessa problemática, fazendo um recorte que nos ajudará a entender com mais clareza porque eu trago essas questões ao debate.
Algumas semanas atrás, a Anvisa comunicou por meio de publicação no Diário Oficial que havia cedido o primeiro registro de medicamento à base de cannabis no Brasil. Na prática, isso significa que um laboratório farmacêutico conseguiu autorização para produzir e comercializar legalmente um medicamento à base de maconha no território brasileiro. Que medicamento é esse? Qual é o laboratório em questão e porque essas questões não são necessariamente uma boa notícia? Vamos entender.
O primeiro medicamento legal à base de maconha do Brasil
No final do ano passado a Anvisa deu um passo histórico ao regularizar a produção de fármacos à base de cannabis no Brasil. Embora isso seja de fato uma boa notícia, nem a indústria canábica e nem a indústria farmacêutica sabiam ao certo como as coisas funcionariam na prática.
Pois bem, no final de março a mesma Anvisa comunicou publicamente que o laboratório farmacêutico Prati-Donaduzzi, com sede no Paraná, havia obtido autorização para produzir e comercializar o primeiro medicamento nacional à base de cannabis. Trata-se de um fitofármaco líquido, que deve ser ingerido por via oral. Em sua composição há basicamente canabidiol (CBD) puro, 200 mg/ml. O medicamento é livre de THC (substância da maconha que causa efeito psicoativo).
Até aí tudo bem, um grande passo na luta pela desmistificação do uso da maconha para fins medicinais. Os problemas começam quando descobrimos o preço do medicamento em questão: R$ 2.143,30, já com desconto. Isso mesmo, um frasco de 30ml do medicamento custará mais de dois salários mínimos! O preço foi consultado na Droga Raia, rede de farmácias que irá comercializar o produto.
Uma realidade ignorada
Muitas problemáticas podem ser extraídas a partir do preço do medicamento em questão, mas vamos nos atentar àquela que, para mim, é a questão central desse assunto: quantas famílias de um país como o nosso poderiam pagar mais de R$2.000,00 em um pequeno frasco de 30ml de um medicamento? Se você for parar para pensar que esse medicamento vem da extração de substâncias de uma planta que, não fosse a proibição, poderia ser facilmente produzida em larga escala, a coisa toda fica ainda mais revoltante.
Peço um segunda da atenção de vocês para compartilhar um dado que foi divulgado pelo IBGE essa semana. O instituto traçou um mapa da distribuição de renda no Brasil e apontou que a média da renda de 50% da população pobre brasileira é de R$ 850 por mês! Pois é, menos de um salário mínimo.
Agora você imagine quantas pessoas no meio desses 50% precisam ou têm parentes que precisam de medicamentos à base de cannabis? Para elas, a notícia de que um laboratório nacional começará a produzir um produto à base de maconha que custa R$ 2.143,30 não traz alívio, traz apenas mais preocupação.
Em minha análise sobre a indústria farmacêutica versus indústria canábica eu já alertava sobre o fato de que as motivações que levam esses dois personagens a atuar são completamente opostas. Trazer à discussão o preço desse medicamento ilustra bem o que eu quis dizer.
Nós, os protagonistas da indústria canábica sabemos que nenhum cenário justifica a comercialização de um medicamento à base de maconha a preços exorbitantes. Sabemos ainda que, enquanto a maconha não for realmente levada a sério a ponto de receber incentivos em pesquisa e em produção nacional, não há como esperar um cenário diferente vindo da indústria farmacêutica.
O paciente como peça central de seu tratamento
Vamos supor que algumas pessoas tenham condições financeiras para comprar regularmente o produto à base de cannabis aprovado pela Anvisa. Melhor ainda, vamos supor que o governo crie programas que distribuam via SUS esse medicamento a pacientes carentes. Ainda assim temos outra questão muito importante a ser discutida: a concentração de canabidiol presente em tal remédio.
A maconha medicinal pode ser usada para o tratamento de uma série de doenças. Mas, é claro, cada doença tem suas complexidades e níveis. É de se supor, portanto, que um paciente com níveis leves de Autismo não vá precisar da mesma concentração de canabidiol em seu tratamento que um paciente com níveis mais elevados do transtorno. Mas como regular essa dosagem se o medicamento disponível é de apenas uma concentração?
Sempre defendi que o uso da maconha medicinal deve ser administrado de forma autônoma pelo paciente ou pelo responsável por ele. Só essas pessoas sabem a quantidade necessária para tratar seus males. Parece óbvio, mas convém lembrar também que estamos falando de uma planta, não de um fármaco químico. Portanto, sempre defenderei que o paciente seja a figura central no uso de maconha medicinal.
Discutir tudo isso só me faz lembrar de quando conheci a Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa e à Pacientes de Cannabis Medicinal). Na época, recebi o óleo de cannabis e pude ajudar meu filho Raul, portador de Autismo, a redescobrir o mundo a sua volta e a melhorar sua qualidade de vida de maneira surpreendente. Conheci ainda muitas mães que estavam em situação semelhante e outras que aguardavam pela oportunidade de começar o tratamento.
Elas são apenas um recorte num cenário que agrega milhares e milhares de mães, pais, avôs, avós e outros cuidadores de todo o país que poderiam estar proporcionando uma qualidade vida melhor a seus parentes, mas que tem esse direito cerceado por falta de informação e, principalmente, por dificuldades impostas por questões políticas e, agora, também econômicas.
A minha luta e meu propósito motivador vêm sendo levar informações a essas pessoas e, por meio da Linha Canábica, oferecer a elas autonomia para usar a maconha medicinal da maneira como se sentirem melhor. Porque pouco adianta regular a produção de medicamentos à base de cannabis se as pessoas que mais precisam desses medicamentos não poderão usufruir deles.
Este artigo é mais do que uma análise, é um desabafo. Na semana em que comemoramos o dia das mães, quero aproveitar para parabenizar todas as mães desse Brasil, em particular aquelas que lutam pelo direito de oferecer a seus filhos um mundo mais inclusivo e com melhor qualidade de vida. A batalha é constante, mas o propósito que nos move é muito maior: o amor.
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