A Cannabis está com a humanidade há tanto tempo que já perdemos a conta.
Algumas estimativas falam de 6000 a.C, outras de 10.000 a.C – até registros de 25000 a.C já foram associados à planta. Isso nos mostra que, infelizmente, boa parte da história humana com a maconha pode ter se perdido no tempo – ela era tão difundida em diferentes sociedades que fica difícil traçar um caminho exato.
Seria o mesmo que perguntar “quando começamos a andar em pé?”. Olha, se tem uma coisa que os cientistas concordam é que tem tempo, viu.
Parte da mitologia taoista chinesa sobreviveu nos textos modernos, e uma certa mulher aparece centenas de vezes. Chamada de Magu (麻姑), a entidade é representada por uma moça jovem que carrega diversas plantas – associada com a imortalidade e a cura de todos os males. Magu significa literalmente “donzela do cânhamo” – Ma (麻) é o ideograma para a Cannabis em diversas variações do idioma.
Não é nenhuma novidade que os chineses conheciam o cânhamo – principalmente sua utilização para fibras e cordas. Mas as farmacopeias chinesas já de 500-200 a.C apresentam seus efeitos contra a “náusea” e a “infertilidade”.
Assim como muitas outras plantas, é provável que suas propriedades terapêuticas tenham sido descobertas e aplicadas inicialmente por mulheres no período neolítico – ainda que a datação seja nebulosa. Mas a associação da Cannabis com o mundo feminino e a Magu caminha até hoje – uma rápida conversa com qualquer taxista em Taiwan, em 2021, pode resumir a história da “deusa” com detalhes.
Ishtar ou Inanna é uma figura da mitologia suméria e acadiana que começa sendo pouco venerada, mas rapidamente se torna presente de forma massiva conforme chega 400-200 a.C. É uma entidade conectada às mulheres – mas principalmente à força do combate, como seria Afrodite na tradição grega. Elas compartilham a coruja na simbologia.
Seja no mundo Assírio ou Acadiano, existem milhares de menções a Ishtar e seu poder sobre a fertilidade, o sexo e a guerra. Não existe separação entre o sucesso no mundo espiritual e material nessa época, a batalha também é sempre no outro mundo.
Seja no mundo Assírio ou Acadiano, existem milhares de menções a Ishtar e seu poder sobre a fertilidade, o sexo e a guerra. Não existe separação entre o sucesso no mundo espiritual e material nessa época, a batalha também é sempre no outro mundo.
O uso medicinal da Cannabis na Suméria é reconhecido pelos assiriologistas, que debatem mais extensamente sobre qual foi sua duração, e não sobre sua presença. Mesmo que a maior parte do uso fosse para a confecção de fibra, a presença de referências à planta em escritos médicos não é uma exceção. E os deuses aparecem também nesses tabletes.
Inanna provavelmente seria uma das deusas que atuaria sobre a cura e a reprodução da mulher, referenciando inúmeras ervas e incensos. Ela aparece como uma mulher mais velha e costuma atuar contra os outros deuses com muita perspicácia.
No Egito, o uso de Cannabis especificamente para mães era uma constante – pelo menos é o que apontam os textos de medicina escavados até hoje. Mais de um documento histórico aponta para uma descrição precisa da Cannabis no trabalho de parto e também para as cólicas e náuseas da gravidez. Alguns manuais indicam uma mistura de ervas que deveria ser inserida no canal vaginal para facilitar a dilatação e a saída do nascituro. Esse chumaço também poderia ser usado como forma de alívio para a dor. Até mesmo para o tratamento de hemorroida por diferentes origens essa técnica foi apontada.
Outros textos mais tardios citam o clássico uso para cordas e tecidos, incluindo um também um certo tratamento para o cansaço e dor na vista. Curiosamente, hoje o tratamento de glaucoma com a planta já está estabelecido e comprovado.
Na verdade, talvez a presença da Cannabis no Egito tenha até mais implicações. Um mistério ainda não resolvido é a relação da deusa Seshat (ligada à astronomia, escrita)com seu símbolo característico, que geralmente aparece acima da cabeça. Os egiptologistas ainda debatem sobre seu significado, que pode ter inúmeras conexões. Ele aparece em vários hieróglifos e representações de Seshat.
Dando um salto histórico para a Inglaterra moderna, encontramos duas rainhas da Inglaterra que utilizaram a Cannabis em diferentes contextos. A primeira viveu no tempo de Shakespeare e das navegações – a segunda no alvorecer industrial e conservador vitoriano.
Elizabeth não parece ter deixado herdeiros, demonstrado pela sua alcunha de “a virgem”. Ainda assim, seu reinado foi marcado pelo florescer do drama de Shakespeare, que também fumava a erva como muitos outros. Ela inclusive obrigou todos os colonos fazendeiros na América do Norte a plantarem cânhamo para a marinha, prática de extrema importância econômica.
Mas a história interessante mesmo é da outra rainha – Vitória (1819-1901) reinou numa era de explosão do comércio a nível global através da exploração colonial e da indústria. Com isso, chegava nas metrópoles europeias os primeiros preparos médicos farmacêuticos, muitos deles com princípios ativos de plantas que eram originárias da conquista colonial.
A rainha parece ter experienciado ao longo da vida muitas dores menstruais que se acirraram com enjoos na gravidez – e existe a chance de ter sido tratada com Cannabis. Especula-se que as dores excessivas envolvam, em algum nível, os casamentos internos feitos entre famílias da nobreza, o que pode gerar problemas congênitos e maternidades de risco. Vários dos filhos de Vitória vieram do casamento com seu primo.
E para a medicina da época, uma das respostas era a maconha. O médico Sir J. Reynolds que tratava a corte era um proponente ferrenho do uso medicinal na época, como muitos médicos e associações. Ele só trabalhou para a coroa depois dos 60 anos de Vitória – mas não é improvável que antes dele outros tenham prescrito uma tintura de cannabis para as dores da rainha. Esses fármacos eram vistos como um orgulho da civilização europeia à época, pois representavam a conquista da ciência, do mundo e dos “povos bárbaros”.
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