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Origens da Cannabis – Parte I

🔍 Poucas plantas acompanharam a humanidade por tanto tempo quanto a maconha. A descoberta dessa trajetória marca uma das áreas mais movimentadas da ciência histórica na última década.

Ainda que as moléculas presentes na Cannabis tenham sido isoladas somente no século XX, o uso da planta para diversos fins é mais antigo do que a própria escrita. Os primeiros registros datam a domesticação da Cannabis mais ou menos entre 7.000 e 15.000 anos antes do presente. Ainda há bastante debate, mas podemos dizer que pelo menos no primeiro milênio a.C a Cannabis estava plenamente integrada em várias culturas da Ásia Oriental e Central.

O campo da arqueologia é o principal motor dessas evidências – compostos orgânicos da planta ficaram conservados em muitos sítios de escavação, principalmente na Ásia Central. Unindo esses dados com outras fontes – escritas e visuais – podemos remontar o processo de origem e dispersão da planta por toda a Eurásia. Outra contribuição recente para a identificação desse desenvolvimento é a análise genômica das linhagens mais antigas.

Como essa é uma longa história, vamos dividi-la em algumas partes. Assim você pode absorver com calma a trajetória dessa planta ao longo do tempo.

Bora lá?

Uma das evidências mais debatidas nos últimos anos foi encontrada na Ilha de Taiwan, na China. Mais especificamente, uma cerâmica com marcas de cordas amarradas que seriam feitas de cânhamo. A datação dessa peça é fonte de controvérsia, variando desde 2000 a.C até 10000 a.C.

Berço e dispersão

Uma coisa precisa ser dita logo de início: quem espalhou a Cannabis pelo planeta foram os diferentes povos humanos. Diferente do que se pensa, boa parte das linhagens vegetais (como arroz, lúpulo) não existem mais na natureza. Todas são oriundas de um intenso processo de seleção artificial empreendido por sociedades humanas.

Com a Cannabis não é diferente. O próprio nome da principal (e segundo alguns pesquisadores a única) espécie aponta nesse sentido – sativa vem do Latim e significa cultivada. Ou seja, quando o taxonomista Lineu descreveu a planta (no século XVIII) deixava claro que ela era uma espécie domesticada, cultivada. Não era selvagem, não existia sozinha na natureza. Maconha não “dá no mato”. Sua presença dependia, como muitas outras variedades agrícolas, da exploração humana. As poucas variedades selvagens ainda existentes estão no extremo leste da Europa.

Onde ela surgiu, afinal? As evidências mais robustas apontam para a origem da Cannabis entre a Ásia Central e Oriental. Mais especificamente no atual noroeste da China, ao leste do Cáucaso, na fronteira com os atuais Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão. Pouco tempo depois já encontramos sua presença perto do atual Japão.

É importante notar como esse local também é “zona quente” para o surgimento de outras plantas de extrema importância, como arroz, soja, milho-zaburra, damasco, pêssego, painço.

Difusão aproximada da Cannabis a partir de sua origem num grupo genético pequeno. Imagem ilustrativa criada a partir do artigo de Karl Hillig (2005). É importante lembrar que a divisão entre Sativa e Indica não mais é suportada pelas análises gênicas e taxonômicas. Todas as variedades da planta podem hoje ser enquadradas dentro da denominação Cannabis Sativa L. (isso inclui todas as indicas e ruderalis)

Tudo isso ocorreu a partir do período conhecido como Neolítico, quando as sociedades humanas passaram a desenvolver a agricultura com maior intensidade. Na China, esse momento se inicia mais ou menos em 10.000 a.C, com as primeiras espécies domesticadas, e terminaria em 8000 a.C, com os primeiros vestígios de metalurgia.

Uma análise genômica bastante recente – publicada em julho de 2021 – aponta para uma domesticação muito prematura da Cannabis ainda próximo do ano 10.000 a.C. Essa é considerada uma estimativa otimista, pois o processo de domesticação pode levar séculos ou milênios. Domesticação não significa começar uma fazenda do dia pro outro, mas uma transição bastante lenta do domínio da flora.

Amostras analisadas no sequenciamento genético mais recente. Em amarelo estão as linhagens mais basais, mais próximas da Cannabis “original”.

Ainda assim, esse mesmo estudo concluiu que todas as variedades e cultivares modernos tanto de cânhamo para fibra quanto de flores para consumo originam de um único pool genético, um grupo de plantas selvagens nativas do noroeste da China.

O avanço da Cannabis também é o avanço das sociedades que a cultivaram. Ou seja, por muito tempo a planta seguia os assentamentos humanos na forma de planta ruderal, ou “daninha”, como diríamos hoje. Aquelas plantas que crescem em qualquer terreno recentemente alterado.

Com o tempo, especula-se que a planta tenha começado a ser utilizada primeiramente para criar tecidos e cordas, como apontam as primeiras evidências. Saltando milhares de anos à frente, para 500 a.C, temos os primeiros registros chineses mais robustos de plantas com índice psicoativo mais marcante, isto é, com THC acima do normal para as plantas selvagens. Foram encontrados num local que indica a inalação durante um ritual. Ainda é difícil afirmar se esses achados indicam uma domesticação total de variedades para consumo, como sabemos para o uso em fibras, ou uma variedade selvagem mais potente.

Assim, temos uma origem única para duas linhagens – plantas para consumo e outras para fabricação têxtil. Ambas surgem do mesmo ancestral comum selvagem no noroeste chinês.

Uma hipótese mais polêmica que tem perdido força nos últimos anos é a de origem na Europa. Alguns pesquisadores do século XIX apontaram esse caminho, mas que parece não ser verdadeiro. Provavelmente a Cannabis chegou na Europa muito tempo depois do que seu desenvolvimento na China e na Ásia Oriental. O primeiro sítio europeu com evidências mais robustas de presença do cânhamo faz parte da cultura Yamnaya, mas já na chamada Era do Bronze (+-2500 a.C). Ou seja, provavelmente no neolítico europeu a Cannabis não estava presente.

A briga sobre o Óleo de Abramelin – Cannabis na Bíblia?

Óleo de Abramelin é o nome europeu e medieval para um óleo bastante tradicional da região de Israel, uma adaptação de outro preparo chamado óleo Ta-n-Akh, que aparece na Bíblia em várias citações, inclusive numa missão dada a Moisés no livro do Êxodo. O óleo parece ter sido conhecido também no Egito Antigo. Era uma mistura de ervas.

Hoje sabemos com bastante clareza, principalmente por registros arqueológicos, que a maconha estava presente no território da Palestina e de Israel pelo menos desde o primeiro milênio a.C. Existem diversas hipóteses que buscam explicar a chegada da planta nessa região, mas muito provavelmente se deu por comércio de longa distância com o Extremo Oriente.

Em suma, a região do relato bíblico não era grande produtora de Cannabis, mas provavelmente comprava o produto através do que ficou conhecido como “Rota da Seda”, um conjunto de várias rotas comerciais diferentes no sentido Oriente-Ocidente. Entre os produtos comercializados, como minerais e pedras preciosas, estavam plantas aromáticas como a Cannabis.

O possível intermediário dentro desse circuito comercial eram os povos sumérios, do atual Iraque, que também operavam o comércio de longa distância em busca de itens importantes para os palácios reais. Na escrita suméria e acadiana (cuneiforme), encontramos a Cannabis nos textos medicais listada junto a outras ervas.

Entretanto, resta uma grande polêmica sobre essa questão. Na Bíblia, um óleo cerimonial sagrado (como o atual óleo de batismo do cristianismo) de tradição judaica aparece várias vezes. Em algumas citações seus ingredientes são listados, e isso gerou um grande debate sobre a possível tradução das plantas utilizadas no seu preparo.

A citação mais famosa está em Êxodo 30:23-25. Entre as inúmeras traduções para o português, temos:

“Tu, pois, toma para ti das principais especiarias, da mais pura mirra quinhentos siclos, e de canela aromática a metade, a saber, duzentos e cinquenta siclos, e de cálamo aromático duzentos e cinqüenta siclos, e de cássia quinhentos siclos, segundo o siclo do santuário, e de azeite de oliveiras um him. E disto farás o azeite da santa unção, o perfume composto segundo a obra do perfumista: este será o azeite da santa unção.”

Êxodo 30:23-25 (grifo nosso)

Neste trecho Jeová teria falado diretamente com Moisés para que preparasse o óleo “segundo a obra do perfumista”. A palavra utilizada para o que foi traduzido como “cálamo aromático” é קנה בשם (keneh bosem). Por muito tempo ela foi traduzida unicamente como cálamo, que é uma planta de pântanos bastante comum na região.

Entretanto, diversos autores tem apontado a possibilidade de esta tradução estar errada. A primeira a levantar essa possibilidade foi Sula Benet, uma antropóloga da cultura judaica que viveu no século XX. Para ela, kaneh-bosem era com toda certeza Cannabis, contrariando o que se pensava normalmente. Ela argumentava um erro de tradução na passagem para o grego, a chamada Septuaginta.

Algum tempo depois outros pesquisadores apontaram uma inconsistência na tradicional tradução: o cálamo tem pouquíssimo valor aromático ou simbólico. Muitos argumentaram que não faria sentido uma planta pantanosa de pouca importância ser utilizada na formulação do óleo, principalmente através de outras citações bíblicas que indicam que essa erva teria vindo de longe. Ainda assim, não significa que seja diretamente a Cannabis, mas que a tradução para cálamo não é tão sólida assim.

Malyon & Henman (1980) continuaram a afirmação de Benet: para eles não havia dúvida do erro de tradução, provavelmente se tratava da Cannabis quando se traduzia cálamo. Mais adiante, nos anos 2000, o historiador Chris Bennet buscou reforçar essa argumentação, listando diversos registros da possibilidade de uso (inclusive psicoativo, pra “dar onda”) do óleo, seja queimado ou ingerido. Mesmo assim, não era a principal teoria aceita para a tradução.

File photo of ruins of the temple in Arad
Sítio arqueológico de Tel Arad, próximo da cidade de Jerusalém.

A nova descoberta – THC e CBD nos templos

Em 2020, toda essa polêmica retornou ao debate. Isso porque um antigo sítio de escavação na região da Palestina – chamado Tel Arad – foi reexaminado com análises laboratoriais. Mais especificamente dois altares cerimoniais onde haviam marcas de plantas carbonizadas. A conclusão da análise foi certeira: no altar menor havia traços claros e bem conservados de THC, CBD, CBN, CBG e outros terpenos típicos da Cannabis. O altar data mais ou menos de 500 a.C. O artigo original foi publicado no Tel Aviv Journal. Já no altar maior havia marcas de outras plantas aromáticas, especificamente o franquincenso (óleo de olíbano)

Cannabis residue on artefacts from an ancient temple in southern Israel. Archaeologists say it provides the first evidence of the use of hallucinogens in the Jewish religion.
Altar menor de Arad mostra restos orgânicos de plantas misturadas com gordura animal para facilitar a queima. Nessa mancha preta foram encontrados THC, CBD, CBN e vários terpenoides. Um indicativo claro da presença de Cannabis carbonizada no altar.

Essa descoberta recente atribui mais respaldo para a possível presença da maconha no texto bíblico. Se antes essa era uma tradução pouco apoiada pelos pesquisadores, cada vez mais vem ganhando força. É importante lembrar: nós sabemos por várias fontes que a Cannabis estava sim nessa região, e não há duvida disso. A questão é se ela está na Bíblia, especificamente nas passagens que falam do óleo cerimonial.

Enquanto esse dilema não é concluído, podemos dizer com bastante certeza que no tempo bíblico a maconha fez parte de um circuito econômico que abrangia os povos hebreus. Muito provavelmente chegando de rotas vindas do oriente mais distante e era utilizada em rituais funerários.

🔍 Mas a história da Cannabis não acaba aqui!

Vamos continuar essa saga em outros textos aqui no blog da LCB! Essa é só a primeira parte 🙂

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Além do artigos citados no corpo do texto, ressaltamos o seguinte importante trabalho que resume a trajetória da planta: Clarke, R.C. and Merlin, M.D. 2013. Cannabis: Evolution and Ethnobotany. Berkeley, Los Angeles and London.

Pedro Costa

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