Panorama da Cannabis Medicinal no Brasil
Não há hoje no Brasil regulamentação a respeito do auto-cultivo por pessoa física de Cannabis Sativa L. para fins medicinais, a consequência grave desta ausência de regulação e distinção entre condutas, como é de conhecimento notório que os pacientes podem ter suas condutas enquadradas no art. 33, § 1º, da Lei n. 11.343/2006, punível com pena privativa de liberdade.
Segundo definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), droga é qualquer substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas causando alterações em seu funcionamento. Entretanto, algumas substâncias possuem efeitos terapêuticos e, assim, ao serem utilizadas para o tratamento de doenças, passam a ser consideradas medicamentos. Tanto que a lista de Classificação Internacional de Doenças, 10ª Revisão (CID-10), em seu capítulo V (Transtornos Mentais e de Comportamentos) inclui o uso de canabinóides;
A Convenção Única sobre Entorpecentes, promulgada pelo Decreto nº 54.216/64, em seu preâmbulo, reconhece expressamente o uso médico dos entorpecentes como indispensável;
A Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, incorporada no ordenamento jurídico nacional pelo Decreto nº 79.388/77, também estabelece que o uso de tais substâncias para fins médicos e científicos é indispensável e que a sua disponibilidade para esses fins não deve ser indevidamente restringida;
A Constituição da República Federativa do Brasil, no artigo 196, estabelece que o direito à saúde consiste em um direito público, incumbindo ao Estado o dever fundamental de prestação de saúde, o qual é concretizado com a formulação de políticas sociais e econômicas, as quais visam, dentre outros, a adoção de um sistema universal de acesso aos serviços públicos de saúde;
A concepção de um Estado democrático de direito está amplamente ligado à observância dos direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988, os quais se destinam a assegurar os valores basilares às pessoas por meio do respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana;
Da simples leitura da epígrafe da Lei de Drogas nº 11.343 de 2006, é evidente que, ela não proíbe o uso adequado e a produção autorizada. Também prevê a possibilidade da União se autorizar o plantio, a cultura e a colheita de vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas substâncias para fins medicinais ou científicos (art. 2º);
Nesse contexto, os dispositivos da Lei de Drogas que tipificam os crimes incluem um elemento normativo descrito da seguinte forma: "sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Portanto, se houver autorização ou determinação legal ou regulamentar, não se pode falar em crime, uma vez que ausente o elemento normativo do tipo.
No entanto, como mencionado anteriormente, até o momento atual não existe regulamentação sobre o assunto, o que tem levado a numerosos pedidos de habeas corpus perante o Poder Judiciário.
A Cannabis sativa, popularmente conhecida como a maconha, foi incluída como planta medicinal pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na Lista Completa das Denominações Comuns Brasileiras - DCB pela Resolução da Diretoria Colegiada RDC N° 156, de 5 de maio de 2017;
Dentre as resoluções da ANVISA, destacamos a Resolução da Diretoria Colegiada - RDC n° 17, de 6 de maio de 2015, que permitiu a importação, em caráter de excepcionalidade, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado para tratamento de saúde, de produto industrializado que possua em sua formulação o canabidiol em associação com outros canabinóides, dentre eles o THC - o canabidiol foi incluído na “Lista C1 - Lista das outras substâncias sujeitas a controle especial”, por alteração à Portaria/SVS nº 344, de 12 de maio de 1998. Posteriormente, a Resolução da Diretoria Colegiada - RDC N° 17, de 6 de maio de 2015 foi substituída pela Resolução n. 335, de 2020, da Diretoria Colegiada da ANVISA, permitindo também a fabricação e comercialização do fitoterápico.
Atualmente, a Resolução n. 660/2022 da Diretoria Colegiada, definiu critérios e procedimentos para a importação de produtos à base de Cannabis por pessoa física, ou seja, trazendo importante alteração na norma incluindo quaisquer produtos a base da planta e não mais a base de Canabidiol.
Ou seja, o Estado brasileiro reconhece os benefícios terapêuticos da planta, contudo não regulamentou até a presente data o auto-cultivo, sendo a alternativa do paciente fazer o uso do habeas corpus para poder salvaguardar sua liberdade de ir e vir, sem riscos de ir preso.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ)
O Superior Tribunal de Justiça por meio das suas 5ª e 6ª turmas que são responsáveis por processar e julgar os habeas corpus que versam sobre o auto-cultivo de Cannabis, os quais em conjunto compõem também a 3ª seção de julgamentos. O Tribunal neste sentido, vêm consolidando uma jurisprudência favorável ao paciente decidindo que é ilegal a instauração de persecução penal contra pessoa que:
- possui prescrição médica devidamente circunstanciada;
- possui autorização de importação da ANVISA;
- tem expertise para produção, comprovada por certificado de curso ministrado por associação; e
- realiza o cultivo de cannabis sativa para extração de canabidiol para uso próprio.
Dentre os julgados mais importantes, destaco: EREsp n. 1.624.564/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 14/10/2020, DJe de 21/10/2020; REsp n. 1.972.092/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 30/6/2022; e HC n. 779.289/DF, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 22/11/2022, DJe de 28/11/2022.
HABEAS CORPUS PARA O CULTIVO CASEIRO DA CANNABIS SATIVA L. PARA FINS MEDICINAIS
Conceito e base legal:
HC: artigo 5º inciso LXVIII da Constituição Federal e arts. 647 e 648 do Código de Processo Penal - É o remédio judicial que tem por finalidade evitar ou fazer cessar a violência ou a coação à liberdade de locomoção decorrente de ilegalidade ou abuso de poder.
Espécie de Habeas Corpus para obter concessão para o cultivo
Habeas corpus preventivo: utilizado quando a violência ou coação ilegal ainda não ocorreu, mas tudo indica que iria se consumar em breve (a conduta do paciente implica em possibilidade de prisão). Dá-se então o habeas corpus preventivo.
Legitimidade ativa (A parte impetrante, que ingressa com o remédio constitucional)
Pode ser impetrado por qualquer pessoa, independentemente de habilitação legal ou representação de advogado (dispensada a formalidade da procuração). O analfabeto pode impetrar, desde que alguém assine a seu rogo (art. 654, § 1º, c, do Código de Processo Penal).
Obs: Admite-se a impetração por telegrama, radiograma ou telex, e até por telefone (RT 638/333). Sobre a impetração por meio eletrônico, vide Lei n. 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que trata da informatização do processo judicial (cada tribunal adota um sistema eletrônico processual diferente, o impetrante deve se informar por meio dos manuais disponíveis nos sites tribunais sobre o peticionamento eletrônico de pessoas sem assistência de advogado).
Legitimidade passiva (Contra quem o remédio é impetrado)
No polo passivo da ação de habeas corpus está a pessoa – autoridade ou não – apontada como coatora, que deve defender a legalidade do seu ato, quando prestar as informações. Neste caso, em geral os Representantes e dirigentes dos Órgãos de Segurança Pública são as autoridades coatoras, exemplos:
- DIRETOR-GERAL DA POLÍCIA FEDERAL;
- DIRETOR-GERAL DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL;
- DELEGADO-CHEFE DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE X;
- COMANDANTE DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE X;
- COMANDANTE DA CORPORAÇÃO DAS GUARDAS MUNICIPAIS DE X;
Hipóteses de cabimento
Justa causa é quando há um motivo legal e fatos que justifiquem a restrição da liberdade de ir e vir. A hipótese aqui se refere à falta de justa causa para a prisão, investigação e processo. A prisão só é justificada em caso de flagrante delito ou por uma ordem escrita e fundamentada de uma autoridade judicial competente. Não há justa causa para a investigação policial quando ela envolve um fato atípico ou quando o suspeito já está livre de punição.
O fato atípico é o principal argumento do habeas corpus para o auto-cultivo, tendo em vista que a conduta de plantar cannabis para fins medicinais, não constitui o crime de tráfico previsto na Lei de Drogas, sendo este o entendimento atual dos tribunais superiores.
Competência
- Ao juízo de direito de primeira instância:
Para inquérito policial de autoridade coatora (Órgãos de Segurança Pública Estadual). Porém, se o inquérito tiver sido requisitado por autoridade judiciária, a competência será do tribunal de segundo grau competente, de acordo com a sua competência.
Quando a autoridade coatora for representante do Ministério Público Estadual.
- Ao Tribunal Regional Federal
Se a autoridade coatora for juiz federal (art. 108, I, d, da CF/88).
- Ao Superior Tribunal de Justiça
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I – processar e julgar, originariamente:
[...]
- i) os habeas corpus, quando o coator ou paciente for qualquer das pessoas Governadores dos Estados e do Distrito Federal, os desembargadores dos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal (Tribunal de Justiça, de Contas, Regionais Federais Federal, do Trabalho, etc.), ou quando o coator for tribunal sujeito à sua jurisdição, Ministro de Estado ou Comandante da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.
- Ao Supremo Tribunal Federal
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente:
[...]
- i) o habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância; (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 22, de 1999)
Julgamento e efeitos
Se o habeas corpus for concedido para evitar ameaça de violência ou coação ilegal, será emitida uma ordem de salvo-conduto em favor do paciente. Em geral, nos casos de habeas corpus para o cultivo de Cannabis, consta da decisão que concede o salvo-conduto, a periodicidade de cultivo e a quantidade de plantas autorizadas para cultivo. É importante ressaltar que o paciente ficará adstrito ao que foi decidido em seu caso específico, podendo ser punido pelo excesso.
Fundamentos mais comuns:
- Pode ser feita por qualquer pessoa, no caso, denominada impetrante.
- Conteúdo: o órgão jurisdicional a quem é endereçada a ação; o nome da pessoa que sofre ou está ameaçada de sofrer a coação (o paciente); o nome de quem exerce a coação ou ameaça; a descrição dos fatos que configuram o constrangimento; a assinatura do impetrante ou de alguém a seu rogo.
- d) Liminar (pedido de urgência): é admissível, se os documentos que instruírem a petição evidenciarem a ilegalidade do ato impugnado (art. 660, § 2º , do CPP). Ou seja, o paciente deve instruir o habeas corpus com toda a documentação pertinente que comprove a conduta atípica, ou seja, cultivar
Cannabis apenas para fins medicinais.
Estrutura do habeas corpus:
- Endereçamento:
A seguir temos uma tabela ilustrando quem julga o habeas corpus de acordo com a autoridade coatora, seguido de alguns exemplos de endereçamentos possíveis conforme órgão julgador:
AUTORIDADE COATORA |
QUEM JULGA? |
Delegado de polícia |
Juiz de Direito |
Delegado Federal |
Juiz Federal |
Juiz de Direito |
Tribunal de Justiça |
Juiz Federal |
Tribunal Regional Federal |
Juiz do Juizado Federal |
Turma Recursal |
Promotor de Justiça |
Tribunal de Justiça |
Procurador da República |
Tribunal Regional Federal |
Tribunal de Justiça |
Superior Tribunal de Justiça |
Tribunal Regional Federal |
Superior Tribunal de Justiça |
Superior Tribunal de Justiça |
Supremo Tribunal Federal |
Juiz de Direito:
AO JUÍZO DA VARA CRIMINAL DA COMARCA DE [CIDADE]/[UF]
AO JUÍZO DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS DA COMARCA DE [CIDADE]/[UF] Juiz Federal:
AO JUÍZO DA VARA CRIMINAL FEDERAL DA COMARCA DE PORTO [CIDADE]/[UF]
Tribunal de Justiça:
AO JUÍZO DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE [ESTADO]
Tribunal Regional Federal:
AO JUÍZO DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA FEDERAL DO ESTADO DE [ESTADO]
Turma Recursal:
AO JUÍZO DA EGRÉGIA TURMA RECURSAL DO ESTADO DE [ESTADO]
Superior Tribunal de Justiça:
AO JUÍZO DA PRESIDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Supremo Tribunal Federal:
AO JUÍZO DA PRESIDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
- Identificação das partes:
Neste passo você irá qualificar o Paciente e/ou impetrante e autoridade coatora.
- Nome da ação e fundamento legal:
Nome: HABEAS CORPUS. Fundamento: Art. 5º , LXVIII, da Constituição da República, e arts. 647 e 648 (e inciso correspondente) do Código de Processo Penal.
- Corpo da peça (Dos fatos e do direito).
Neste passo, você deve fazer uma abordagem dos fatos (descrição do histórico de vida do paciente, tratamentos realizados e o tratamento com Cannabis), voltada ao constrangimento ilegal pela atipicidade da conduta. De tal sorte que, na parte do direito você deve expor os fundamentos jurídicos que se aplicam aos fatos e justificam seu pedido.
- Pedidos:
Aqui, a depender do fundamento invocado, você deve requerer: (a) Seja expedida ordem de salvo-conduto em favor do paciente.; (b) Seja deferido o pedido de tutela antecipada em caráter de urgência visto a imprescindibilidade da manutenção do tratamento (para os casos em que houver pedido liminar).
- Fechamento:
Ao final da peça, você deve inserir o local, a data e assinatura do impetrante, podendo ser no seguinte formato:
[CIDADE], [DIA] DE [MÊS] DE [ANO]
[IMPETRANTE E/OU PACIENTE]
CPF nº [número do CPF]
Documentação Necessária
Quanto maior a força probatória das suas alegações melhor, ou seja, não se trata de quantidade, mas sim da qualidade da prova. Irei listar aqui documentos que julgo importantes para anexar junto ao pedido, lembre-se que cada caso individual terá suas peculiaridades, por vezes demandando de maior quantidade de documentação ou menor:
- Documentos pessoais (e do representante, se houver);
- Comprovante de origem lícita de renda;
- Prescrição médica indicando tratamento com Cannabis;
- Laudos médicos relatando todo o histórico do paciente;
- Autorização de importação da ANVISA com validade atual;
- Relato manuscrito do paciente (que pode ser incorporado a parte “dos fatos” do habeas corpus) contando a história de vida, tratamento, alto custo com a medicação importada e o benefício econômico do auto-cultivo);
- Orçamento do produto importado em comparação com o orçamento do produto artesanal.
- Comprovante de aprendizado ou curso sobre técnicas de cultivo e extração.
- Laudo Agronômico