“Perdi a conta de quantas vezes precisei contar com a solidariedade de uma colega de cela pra ter como conter a menstruação forte. Lá dentro eu não recebia muitas visitas, então os absorventes que as outras detentas recebiam dos familiares serviam pra mim também. Era isso e papel higiênico. Toda vez que a menstruação descia era como um sinal da vida me lembrando que se eu tivesse livre poderia estar na cama da minha casa deitada até as cólicas passarem, eu lembrava disso enquanto estava deitada naquela cama dura dentro de uma cela. Essa tal de pobreza menstrual é muito mais pesada pra uma mulher que tá presa”
Segundo a antropóloga Mirian Goldenberg a pobreza menstrual pode ser entendida como a falta de acesso não somente a itens básicos de higiene durante o período de menstruação, mas também a falta de informação, dinheiro para comprar um absorvente e, principalmente, falta de apoio.
Rosana é sobrevivente do sistema prisional e conta que recebia uma quantidade muito limitada de absorventes que não conseguia dar conta do seu forte fluxo menstrual. Rosana vivenciou todos os pontos descritos acima como mais uma ferramenta de punitivismo. O corpo da mulher no cárcere é visto como uma forma de evidenciar o sistema patriarcal que vivemos. Ações de movimentos sociais visam minimizar os impactos causados pela ausência de políticas públicas para essas mulheres. Um projeto de Lei Projeto n.º 96/2021 de autoria da Deputada Luciana Genro, dispõe sobre a distribuição gratuita e sem controle de fornecimento de absorventes íntimos, para todas as pessoas reclusas que menstruam, de acordo com a demanda de cada pessoa presa, em regime socioeducativo ou em cumprimento de medida de segurança. Dentro dos aspectos jurídicos ancorados no tema vale trazer para a discussão os pontos sabiamente mencionados pelo deputado Carlos Andrade na justificação do Projeto de Lei sobre a referida discussão:
“A Constituição Federal elenca em seu art. 1º a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil quanto Estado Democrático de Direito. Trata-se de um direito fundamental, inviolável e inerente à condição humana, que foi norteador de todos os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Muito embora a sociedade brasileira tenha conquistado significativos avanços ao exercício da cidadania plena no que diz respeito aos direitos humanos desde a redemocratização, há ainda severas violações à dignidade da pessoa humana. Um dos casos mais graves de violação institucional dos direitos humanos é a péssima condição dos presídios brasileiros. Denúncias sobre a precariedade das instalações carcerárias, da superlotação das celas e da violência moral e física que sofrem os presidiários já foram objeto de CPI, de audiências públicas e de comitivas de deputados, que visitaram os principais presídios a fim de fiscalizar as condições dos presos. No entanto, pouco ainda foi feito para adequar o sistema carcerário brasileiro às condições mínimas da dignidade da pessoa humana. Recentemente, o trabalho da jornalista Nana Queiroz denunciou a situação das mulheres presas no Brasil, que são submetidas à restrição de uma quantidade máxima de absorventes íntimos e papel higiênico. Há relatos de presas que utilizam miolo de pão como alternativa para conter o fluxo menstrual diante da escassez de absorvente. Esse fato evidencia o quão é degradante a vida de uma mulher presa que não tem assegurado o direito à dignidade. Ademais, a restrição de papel higiênico é também impor aos presos e presas uma situação humilhante e vexatória, que deveria ter sido evitada por ato da administração pública. A necessidade de se impor a dispensação de absorventes sem controle de fornecimento se dá porque a quantidade de fluxo menstrual varia de mulher para mulher. A própria literatura médica não preconiza mais a mensuração de fluxo por quantidade de absorvente, sendo assim, necessária a dispensação de absorventes íntimos sem quantidade prévia definida.”
Entre passos e realidade: desigualdade social e menstruação
“Faça chuva ou sol preciso sair de casa pra vender picolé senão o pão do café não volta comigo. Passo uns quatro dias menstruada e não posso ficar em casa nesses dias senão a semana é perdida e a renda mensal fica completamente quebrada. Os dias que estou menstruada são os mais complicados para trabalhar. Trabalho na rua, os banheiros químicos quase não existem mais na cidade, quando acho algum estão imundos. Procuro sempre ficar perto de algum shopping vendendo picolé, assim tenho como usar o banheiro pra tocar os pedaços de papel higiênico ou de absorvente quando eu tenho. Coloco a mochila nas costas com os rolos de papel e amarro um casaco na cintura, caso a menstruação vaze pelo menos não vai dar pra ninguém perceber minha roupa suja. Pra ser bem sincera é mais barato pra mim comprar 4 rolos de papel higiênico por 2 reais e usar junto com uns pedaços de pano. O absorvente tá saindo por 4 reais o pacote, no pacote vem 8 absorventes, com esse valor eu compro uma quentinha de 5 reais pra almoçar na rua e ainda sobram alguns trocados da alimentação pra quando chegar em casa”
O uso de papel higiênico como uma solução improvisada para conter o sangramento menstrual foi a alternativa encontrada por Ana, jovem de 19 anos, que adquire sua renda através da venda de picolé nas ruas de Salvador. Para além da falta de recursos para a compra de absorventes descartáveis ela enfrenta a precarização de ambientes adequados para realizar a higiene pessoal.
O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), enquanto agência da ONU para questões de desenvolvimento populacional com foco nas áreas de saúde sexual, reprodutiva, igualdade de gênero, raça e juventudes, e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que trabalha pela garantia dos direitos de cada criança e adolescente, coloca luz diante do tema Pobreza Menstrual através do relatório POBREZA MENSTRUAL NO BRASIL: DESIGUALDADES E VIOLAÇÕES DE DIREITOS. O Relatório traz um cenário preocupante com relação aos direitos menstruais, marcado pelas históricas desigualdades de gênero, raça, região e classe social, agravadas em tempos de crise sanitária e econômica. Como o documento descreve, a pobreza menstrual se refere a inúmeros desafios de acesso a direitos e insumos de saúde. Estes desafios representam, para meninas, mulheres, homens trans e pessoas não binárias que menstruam, acesso desigual a direitos e oportunidades, o que contribui para retroalimentar ciclos transgeracionais de inequidades de gênero, raça, classe social, além de impactar negativamente a trajetória educacional e profissional. Está relacionada não apenas a falta de recursos para a compra de absorventes ou coletores menstruais, a pobreza menstrual é uma realidade que deixa evidente os processos de desigualdade social e marginalização dos corpos.
Menstruação e vida escolar
“Me lembro como se fosse hoje do dia que minha filha menstruou. Ela estava na escola e recebi a ligação da coordenadora pedagógica me pedindo para ir busca-la. Quando cheguei lá a menina estava tão assustada. Ela tinha 12 anos e ainda não tínhamos conversado sobre menstruação. A minha veio quando eu tinha 14 anos e imaginei que seria assim com ela também. Ela me contou que estava na aula de educação física e quando foi ao banheiro viu um borrão marrom na calcinha e sentiu uma leve dor na barriga, ela contou para a professora que percebeu que era menstruação chegando. Foi um medo, né? na minha cabeça já vi o corpo dela mudando, pensei nos olhares dos homens pra ela, na dificuldade que seria todo mês essa menina menstruando. Nos primeiros meses ela sentia medo quando se aproximava da data da menstruação, faltava aula, ficava mais calada. Na escola a menstruação parece que não existe. As meninas conversam entre elas sobre o assunto, os meninos dão risada quando elas falam e as professoras não abordam na sala de aula o tema. Minha filha estuda em uma escola que é muito difícil ter papel higiênico no banheiro, imagine absorvente! Nunca vi nenhuma escola pública distribuir. A escola deveria deixar no banheiro absorvente para as meninas usarem, deveriam falar sobre esse assunto na reunião de pais e não fazer com que as meninas sintam vergonha de algo que é natural do corpo”
Muitas das informações relacionadas a menstruação para meninas nas escolas estão relacionadas aos métodos contraceptivos, o que justifica a frase amplamente escutada “já virou mocinha”. Mocinha é vista como aquela que já pode reproduzir, fazendo da menstruação um perigo. O relatório da UNFPA cita que se espera da educação menstrual que ao adquirir noções sobre seu corpo e entendimentos básicos do ciclo menstrual, a educação menstrual possibilite ajuda a desmistificação de tabus estabelecidos, a diminuição do constrangimento e o estresse das jovens, além de empoderar as meninas, tornando-as capazes de ter mais poder sobre seus corpos e até mesmo acesso à diferentes produtos para garantia de sua saúde menstrual. O mesmo relatório analisou alguns aspectos sobre a pobreza menstrual presente nas escolas trazendo uma perspectiva sobre os banheiros, papel higiênico, pia e sabão. Sendo esses itens essenciais para a promoção da higiene pessoal. Durante a referida pesquisa foram encontradas 321 mil alunas, 3,0% do total de meninas estudantes brasileiras, estudam em escolas que não possuem banheiro em condições de uso, dentre as quais, 121 mil meninas estão no Nordeste, ou seja, 37,8% do total de meninas estudam em escolas sem banheiro. Quando analisamos isoladamente as escolas rurais são cerca de 6,4% das meninas estudando em escolas sem banheiro em condição de uso. Comparando a situação somente dentre as escolas localizadas no Norte, o percentual de meninas sem acesso a banheiro em suas escolas chega a quase 8,4%. Quanto à esfera administrativa da escola, em escolas públicas estaduais são 249 mil meninas sem banheiro disponível na escola, o que representa 77,6% do total das escolares nessa situação.
Citado na pesquisa como um dos insumos indispensáveis para a garantia da dignidade menstrual, o papel higiênico tem seu acesso discorrido através de dados alarmantes. Estima-se que no Brasil 11,6% do total de alunas, não tenham a sua disposição papel higiênico nos banheiros das escolas em que estudam; dentre essas meninas, 66,1% são pretas/pardas. Quando analisamos a situação das meninas negras em comparação com as meninas brancas, o risco relativo de uma menina negra estudar em uma escola que não tenha acesso a papel higiênico nos banheiros é 51% maior do que para meninas brancas. Sobre a infraestrutura das escolas o acesso a higienização das mãos é um dos pontos de destaque no relatório do O Fundo de População das Nações Unidas o dado impressiona: são mais de 3,5 milhões de meninas que estudam em escolas que não disponibilizam sabão para que os escolares lavem as mãos após o uso do banheiro, dentre as quais, 62,6% são pretas e pardas: 2,25 milhões de meninas. Essa proporção de meninas sem acesso a sabão na escola se mantém em 1 em cada 3 meninas para cada uma das grandes regiões do país, sendo um pouco maior no Norte e no Centro-Oeste.
O Projeto de Lei número 6340/2019 que dispõe sobre o fornecimento de absorventes higiênicos nas escolas públicas e nas unidades básicas de saúde em âmbito nacional, e dá outras providências caminha a lentos passos, o mesmo ocorre com o Projeto de Lei 428/2020, de autoria da deputada Tabata Amaral, que dispunha sobre a distribuição de absorventes em espaços públicos não saiu do papel e gerou grandes discussões sobre seu impacto orçamentário. Em 2020 foi aprovada no Rio de Janeiro a Lei 8924 que classifica o absorvente como item essencial na cesta básica, isso é resultado de muita pressão dos movimentos sociais e discussões afim de dar luz ao assunto.
Homens trans e menstruação
“Tentar marcar um ginecologista sendo um homem trans é bastante complicado. Meu nome de registro ainda é o nome que recebi quando nasci, é uma violência ser chamado por um nome que não me contempla e no momento do atendimento médico ser chamado publicamente daquele jeito. Quando me levanto para ir até a sala da médica o meu corpo comunica que existe alguma coisa ali que não está dentro do padrão. A norma é uma borda que minha identidade transborda. A menstruação é mais que um tabu pra mim, são os dias no mês que mais me sinto desconfortável. Quando vou na farmácia comprar absorventes são tantos olhares que minha vontade é desistir e usar panos. É péssimo. Pior é ainda ouvir de algumas pessoas comentários sobre menstruação associando esse fenômeno apenas ao corpo feminino, como se homem também não menstruasse. O apagamento do meu corpo nesse período é mais um diante de tantos outros que enfrento. Não deixo de ser homem por menstruar”
Quantos corpos são silenciados dentro de uma visão cis normativa sobre menstruação? O relato de João, homens trans, 23 anos, nos chama atenção para a importância da discussão sobre o tema. Pobreza menstrual é também sobre invisibilizar a pluralidade dos corpos que menstruam e os enfrentamentos diante da busca por dignidade e qualidade nos processos de garantia da higiene pessoal.
Imaginemos toda essa busca de dignidade vivenciada por uma mulher que vive em situação de rua. A falta de lugar para a troca de absorvente e a falta de saneamento básico para tomar um banho. Mulheres passam a noite com seus corpos cobertos por papelão, pedaços de pano ou contando com a solidariedade de quem faz doação de lençóis.
“É cólica, é menstruação forte, é medo da violência na rua e a vontade que termine logo a menstruação quando chega. Tomo banho na fonte 2 vezes por dia, bem cedo quando tá vazio e pra dormir. Uso o banheiro químico em péssimas condições, muito sujo. Consigo absorvente pedindo na porta dos mercados. Só uma mulher pra entender a outra. Eu peço e nem sempre ganho. Pra trocar absorvente eu procuro um carro estacionado e faço isso no cantinho. Quando não tenho absorvente uso pedaço das roupas que tenho, rasgo pra usar durante os dias de menstruação”
Esse é o relato de Tereza, mulher em situação de rua, 31 anos. Falar sobre pobreza menstrual é denunciar a falta de recursos e de políticas de vida que alcançam os corpos nesse texto citados. Cada depoimento aqui inserido ecoa a vivência de uma pessoa, de sua identidade e vulnerabilidades, faz-se da escrita um instrumento de potencialidade.
Segundo revisão bibliográfica sobre o tema, os sanitários públicos adaptados às pessoas que menstruam devem respeitar os seguintes aspectos: Segurança: o banheiro deve possuir tranca e garantir a privacidade (com cabines individuais, reforçadas e de material opaco); deve ainda estar localizado em um local seguro, indicado por placas, com entradas separadas para banheiros de homens e mulheres, e com boa iluminação. Higiene: água e sabão, papel higiênico, acesso a produtos menstruais, ganchos ou prateleiras para que os pertences não fiquem em contato com a contaminação do chão, espelhos, meios para lavar e/ou eliminar produtos menstruais, evitando o descarte de absorventes no vaso sanitário que resultam em entupimento. Acessibilidade: ser alcançável por meio de um caminho acessível e dispor de ao menos uma cabine acessível a todos as pessoas. Disponibilidade: contar com cabines suficientes para evitar filas longas, estar aberto quando necessário. Manutenção: contar com bons planos de gestão, limpeza e manutenção.
*Os depoimentos transcritos no texto contaram com a autorização dos respectivos entrevistados. A fim de garantir a preservação da identidade, utilizaram-se nomes fictícios da escolha de cada um.
Foram realizadas 5 entrevistas sendo elas com uma mulher em situação de rua, uma mulher sobrevivente do sistema prisional, um homem trans, uma mãe solo e uma vendedora ambulante.
*Buscou-se trazer a vivência de diferentes públicos sobre o tema a fim de garantir a pluralidade de visões.
Referências bibliográficas
POBREZA MENSTRUAL NO BRASIL DESIGUALDADES E VIOLAÇÕES DE DIREITOS – disponível em https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf
Amaral, M. C. E. do. Percepção e significado da menstruação para as mulheres. 147 (2003).
Brasil. Ministério da Saúde, Brasília – DF. Proteger e Cuidar da Saúde dos Adolescentes Atenção Básica (2018)
Brasil. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Básica. (2009).
Brasil. Ministério da Saúde. Caderneta de Saúde da Adolescente. 50 (2013).
Presos que menstruam (Editora Record, Nana Queiroz,294 páginas)
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